TERRA 2.7: Um neófito no planeta da BD
2018-05-07
Há certos livros que têm a capacidade de nos surpreender. Pensamos que conhecemos o autor e já o catalogámos após o ter desfolhado, mas quando o lemos os indícios mudam. O álbum de banda desenhada “Terra 2,7” é uma dessas histórias.
O autor do argumento bem como das ilustrações é Mário Ferreira (MAF), um engenheiro nascido em 1963, que, apesar da sua perene paixão pela BD, abandonou o lápis e a borracha para se dedicar à sua área de formação. Após mais de 30 anos de interregno regressou ao desenho, retorno que resultou nesta publicação debutante editada pela Escorpião Azul, que tem o mérito de ter vindo a apostar em novos autores.
Desde logo um pressuposto de rotulagem que não funciona nesta história é o da idade do autor. É suposto que um homem amadurecido pela quimioterapia da vida tenha perdido algo do registo pueril que o encantava enquanto criança. No caso da “Terra 2,7” a narrativa transborda de fascinação juvenil, o desenho revela o entusiasmo incontido e o ambiente aventuroso é uma premissa incessante. Para o leitor inadvertido o autor só pode ser um jovem, mesmo muito jovem.
Passada num novo mundo, a história relata o percurso de uma equipa selecionada para uma missão pouco clara. Pretexto para desmontar a história humana tal como a conhecemos, mantendo apenas uma constante universal; a sua ganância e estupidez.
No desenho frugal - próprio de quem é principiante na arte sequencial - desfilam várias culturas indígenas imaginárias mas plenas de referências à sociedade hodierna, reflete-se uma geografia utópica cuja toponímia tem raízes no quotidiano do autor e no seu gosto pela cosmogonia da antiguidade. Deuses aztecas e do antigo Egito partilham o protagonismo com autoridades de ambições desmedidas, assim como com humanoides criados por manipulações genéticas reprováveis.
E claro que tudo se revolve em torno do sexo – ou da falta deste – e da atração entre raças diferentes. A aparente naturalidade do cruzamento inter-racial alerta para o “junk ADN” na alteração genética quando parte do ADN não se encontra descodificado.
Este ambiente de crítica actual mantem-se como denominador comum, sendo exemplo o comandante com nome russo que lidera o início da exploração do planeta Terra 2.7, iniciando um conflito que acaba tragicamente para ele. Cem anos depois, o comando pertence a uma mulher de descendência americana que tem objetivos semelhantes (e tudo leva a crer que terá idêntico desfecho).
A narrativa apresenta-se com uma sensibilidade mitológica, onde não poderia faltar o ritual de passagem materializado na travessia do Mar Proibido, no qual poucos pretendiam passar para o lado de lá. Características associadas ao processo das iniciações míticas.
Simbolicamente na mitologia astecas os sacrifícios humanos eram recorrentes uma vez que a base da travessia dos iniciados era num sentido único. Logo as oferendas de seres humanos não são uma travessia da vida para a morte, parte desses humanos irão com os deuses para outros mundos. Esta e outras crenças acompanham-nos nesta leitura proposta por Mário Ferreira.
É interessante notar que durante a guerra provocada pelos humanos para controlar o novo mundo, os deuses são observadores, figurados na imagem de Tezcatlipoca de braços cruzados. Mesmo após demonstrarem-se implacáveis no final do conflito, manifestam-se benevolentes, mas apenas porque estão interessados na força produtiva humana que representa um potencial substituto da mão-de-obra indígena.
O aparentemente relacionamento descomplexado do casal Sam-Giovana esconde uma provocação ao estereótipo do chamado “engate”. No âmbito desta missão extra de criação feminina, enquanto a mulher descontrai na cabeleireira, o homem vai sendo “formatado” com informação, tornando-se “rastreável” pelo sistema.
A leitura desta história é fácil, atendendo a sua exposição linear, e inegavelmente cativante. É certo que as ilustrações denunciam frequentemente a inexperiência do autor, a sua narrativa não tem muitas camadas, mas possui uma mensagem coerente e está desenhada de forma frontal e corajosa. Diria mesmo, executada com uma honestidade que muitos autores mais experimentados teriam receio de arriscar.