A Primeira Banda Desenhada sobre Porcelana

Durante a 30ª edição da Amadora BD foi lançada a banda desenhada sobre porcelana Mare Clausum. A Vista Alegre mesmo ao lado da exposição do Stan Lee e do Jorge Coelho, ousando apresentar a primeira BD concebida num suporte feito de porcelana; um jarrão chinês Companhia das Índias, demonstrando com estrondo que não há antídoto para o feitiço da porcelana passados 1200 anos sobre a sua invenção. Qual é a história que está por trás desta nova “curta” de Penim Loureiro?



Demonstrando uma vitalidade ímpar e um diálogo permanente com criadores dos mais variados domínios artísticos, a Vista Alegre apresentou na 30ª edição do Festival Internacional de Banda Desenhada da Amadora a primeira banda desenhada sobre porcelana do mundo: Mare Clausum, da autoria de Penim Loureiro. Os estudos e esquissos originais desta peça decorativa de grandes dimensões estiveram em destaque na Amadora BD, ao lado de algumas das maiores lendas da “nona arte”.

Fig.1 Festival Internacional de Banda Desenhada da Amadora 2019. Fotos de Lionel Balteiro

A coleção Je Kraak une a Banda Desenhada à porcelana, contando histórias sobre diferentes temas, por ilustradores de BD. Mare Clausum é a primeira peça desta nova coleção que resgata um estilo de decoração milenar da porcelana chinesa, em azul-cobalto (azul de grande fogo), atualizando-a para o século XXI através da sua ligação a criadores contemporâneos de banda desenhada.
Desafiado pela Vista Alegre a transpor a bidimensionalidade da banda desenhada em papel para a superfície curva e sem limites de uma talha oriental em porcelana de grandes dimensões, Penim Loureiro recua ao século XVI em Mare Clausum, para contar a história da introdução da porcelana na Europa, e o papel dos portugueses na globalização do misterioso material branco, translúcido e brilhante que fascina o ocidente desde então.

Fig.2 FIBDA'19 lançamento e sessão de autógrafos desenhados. Fotos de Lionel Balteiro

KRAAK - A PORCELANA CHINESA DAS CARRACAS PORTUGUESAS

Portugal é o país responsável pela introdução da porcelana no Ocidente. De facto, as primeiras porcelanas de exportação chegaram no século XVI ao continente europeu, nas naus de Vasco da Gama, com Portugal a deter o monopólio das rotas de navegação marítima do Índico – Mare Clausum / Mar fechado –, por via do Tratado de Tordesilhas (1492). Rapidamente toda a Europa cobiçava peças produzidas neste misterioso material que chegava à Europa exclusivamente nas carracas portuguesas (embarcações de grande lotação), criando um importante monopólio comercial para o país.

Fig.3 Estudos para as vinhetas da BD "Mare Clausum"

A invenção da porcelana transporta-nos, porém, para a China dos séculos VII a X, marcados pela Dinastia Tang. O navegador italiano Marco Polo (1254-1324) terá sido o primeiro ocidental a ter contacto com as peças de porcelana, tendo-as descrito como algo que se assemelhava ao nacarado das pequenas conchas. A palavra “porcelana” advém, aliás, do italiano porcella (molusco de concha branca, brilhante e translúcida). Em grande parte do mundo, a porcelana é também conhecida como “China”, numa alusão ao berço da porcelana, que nasce da mistura de dois minérios: o feldspato e o caulino.
A porcelana kraak é um tipo de porcelana chinesa de exportação produzido principalmente no reinado do Imperador Wanli (1563-1620) até cerca de 1640. Foi uma das primeiras cerâmicas chinesas de exportação a chegar à Europa em grandes quantidades, e foi frequentemente representada nas naturezas mortas pintadas durante o Renascimento flamengo retratando os luxos estrangeiros. A principal característica da decoração Kraak é o uso de painéis radiais foliados, ou seja, a superfície da porcelana é dividida em segmentos, cada um contendo a sua própria imagem, paisagens e muitas vezes cenas do dia-a-dia, o que lhe confere uma aparente similitude com a atual banda desenhada, faltando-lhe porém a sequência narrativa.

Fig.4 Esboço para a 5ª vinheta. 2 peças de porcelana Kraak com painéis radiais. Estudo da composição da talha

No início do século XVII, entre 1602 e 1604, navios holandeses capturam duas carracas portuguesas carregadas de porcelana chinesa de exportação, que foi leiloada nas cidades de Middelburg e Amesterdão, por valores muito elevados. Surge assim o termo “kraakporselein”, onde “kraak” é uma reinvenção da palavra portuguesa “carraca”, numa alusão às embarcações que tinham caído nas mãos dos piratas holandeses com a preciosa carga.

Fig.5 Esboço e versão final sem cor da 12ª vinheta

Esta é a história que Penim Loureiro conta em jeito de lenda em Mare Clausum da Vista Alegre – o momento de contacto entre o Ocidente e o Oriente, unidos pela porcelana. Uma banda desenhada em porcelana, onde se inscreve em tons de azul profundo a história da porcelana e dos Descobrimentos portugueses, numa narrativa gráfica de linguagem universal onde não faltam piratas, humor e magia.
Fernão Peres ouvia histórias da longínqua China, onde habilidosos artífices talhavam loiça de uma cor branca leitosa a partir de conchas. Dizia-se que tinha propriedades mágicas e que se deitassem veneno numa taça ela partia, revelando o assassino. O pequeno Fernão sonhava com a misteriosa loiça chinesa, a que chamavam porcelana.
Em 1598, a bordo da carraca Santa Iria, Fernão Peres avista uma armada da Companhia Holandesa das Índias Orientais, que cobiçava a porcelana e se opunha ao monopólio do Mare Clausum lusitano. Fernão é forçado a entregar a preciosa carga em troca da vida da tripulação. Quando abrem os baús em Amesterdão, no entanto, os holandeses descobrem que tinham apenas conchas: Fernão escondera a porcelana debaixo das provisões de peixe seco, sabendo que não iriam procurar aí. Graças ao estratagema, a porcelana chegou ao seu destino em Lisboa.

Fig.6 Peça em porcelana e pormenor da banda desenhada finalizada

ATRIBUIR À SUPERFÍCIE - CURVA E SEM LIMITES - DA PORCELANA A FUNÇÃO INÉDITA DE SUPORTE DE BD

A grande dificuldade foi expor uma história que se tem de caracterizar por uma sequência narrativa - com princípio e fim - nas superfícies tridimensionais curvas de uma talha, quando as regras da BD são específicas para as folhas de papel bidimensionais. Penim teve de inventar um novo tipo de leitura em helicoidal que permitisse uma leitura contínua.
A ideia de ilustrar a história da introdução da porcelana na Europa não foi imediata. O autor procurou saber como as primeiras porcelanas chegaram à Europa e leu acerca das enormes dificuldades que os navegadores tiveram para contornar os inúmeros perigos, donde se destacava a apetência dos Ingleses e Holandeses por saquear estes carregamentos. Tentava criar uma história diferente, apenas com referências a este contexto, quando, a certa altura, se apercebeu que isto era, já por si, um argumento. E o mais pertinente é que se tratava da história da génese da porcelana na Europa.
Por outro lado esta história foi contada de acordo com sentido da helicoidal usada, pois começa com o mito medieval acerca da porcelana onde se crê que esta é esculpida das conchas de porcelana. No fim quando almirante descobre que afinal os baús saqueados contêm milhares de búzios - em vez da cobiçada porcelana da china - o ciclo fecha-se numa espiral que retoma o tema do início.

Fig.7 Estudos para as vinhetas do início e do fim da história

Resultou numa das primeiras peças de porcelana que servem de suporte de uma banda desenhada. Este carácter inovador é a prova que a 9º arte não tem de se restringir aos limites planos do livro em papel ou digital e, simultaneamente, um paradigma do posicionamento da Vista Alegre nos tempos hodiernos.

DESMISTIFICAR AS IDEIAS PRECONCEBIDAS ASSOCIADAS À PORCELANA E À BANDA DESENHADA

Penim Loureiro é um ilustrador que sempre cruzou a banda desenhada com diferentes disciplinas de comunicação gráfica, tal como a arquitetura ou o azulejo, vendo nesta fusão uma nova oportunidade de credibilização da arte sequencial, por vezes tão subvalorizada. O narrar um acontecimento usando o desenho é algo primordial no homem. O que a BD introduziu de novo foi capturar o tempo; narrar uma sequência dando-lhe complexidade.
Esta coleção vem reforçar a importância da banda desenhada, desmistificando o estigma desvalorizador da BD, qualificando-a. Aliás será interessante notar que na escolha da Vista Alegre dos artistas para desenhar as peças mais contemporâneas, não existem barreiras entre designers, pintores ou ilustradores, o que permitiu uma liberdade criativa sem as habituais compartimentações disciplinares.

SOBRE A VISTA ALEGRE

Fig.8 Edifício original da Fábrica Vista Alegre e forno no interior

Fundada em 1824, por José Ferreira Pinto Basto, a Fábrica de Porcelana da Vista Alegre foi a primeira unidade industrial dedicada à produção da porcelana na Península Ibérica. Ao longo do seu percurso, a marca esteve sempre intimamente associada à história e à vida cultural portuguesa, e adquiriu uma notoriedade internacional ímpar. Mais do que um espaço fabril, a Vista Alegre é hoje um conjunto arquitetónico de inegável interesse, repositório de memórias sociais e artísticas fundamentais para a construção de uma identidade nacional, de onde se destacam o Museu da Vista Alegre (aberto ao público desde 1964), capela, bairro operário, escola e teatro.

Fig.9 Bairro operário, teatro e capela no núcleo construído da Vista Alegre

Em outubro de 2018 a Vista Alegre foi distinguida pela Comissão Europeia com o prémio “Regiostars” na categoria “Escolha do Público”. O RegioStars é um galardão em que a Comissão Europeia distingue os melhores projetos de política de coesão na União Europeia, privilegiando projetos inovadores e de boas práticas de desenvolvimento regional.
A Vista Alegre recebeu, já em 2019, o cobiçado prémio “Lighting Product Design of the Year 2018” na categoria “Ambient Lighting”, nos “Light in Theory (LIT) Design Awards™”. A distinção foi atribuída à inovadora e criativa coleção de candeeiros “E2H – Earth to Humanity”, uma colaboração entre a Vista Alegre e o designer britânico Ross Lovegrove.
Grandes nomes do design contemporâneo, da pintura, escultura, arquitetura, literatura e outras formas de arte têm emprestadoo seu talento a muitas criações da marca. Siza Vieira, Joana Vasconcelos, Patrick Norguet, Ross Lovegrove, Marcel Wanders, Jaime Hayon, Malangatana, Sempé, Karim Rashid, Brunno Jahara, Carsten Gollnick, Sam Baron, a marca francesa Christian Lacroix e a insígnia Oscar de la Renta são alguns dos artistas e designers que se associaram à Vista Alegre.
Os serviços Vista Alegre são usados oficialmente pelo Presidente da República Portuguesa, pela Casa Branca, por várias Casas Reais e por muitas personalidades de todo o mundo, como a rainha Isabel II de Inglaterra, o rei Filipe VI de Espanha e a rainha Beatriz da Holanda. A Vista Alegre fornece ainda as loiças oficiais de várias embaixadas espalhadas pelo mundo, nomeadamente as do Brasil, Espanha e Marrocos, bem como outras instituições públicas e privadas nacionais e internacionais.

Texto: Diana Ralha